terça-feira, 10 de novembro de 2020

O relógio que quebrou

    Eu cresci lendo e vendo em filmes que no dia em que você encontrasse a pessoa da sua vida, saberia na hora. Como? O que no seu corpo ou na atmosfera entregaria a chegada desse amor? Se eu não sentisse isso por alguém significaria que eu nunca iria encontrar a pessoa da minha vida? 
Aliás, que conceito é esse que institui que, além das cores terem que brilhar e você sentir em algum músculo parado a chegada do amor, ele vai invalidar todos os outros que vieram antes – ou algum que pudesse chegar depois? 
     Quando o amor chegou na minha vida à beira dos 29 eu passei um tempo tentando entender o que deveria sentir que me atestasse que aquele era pra valer, e quase sabotei tudo porque esperava esse sinal mágico do universo que nunca apareceu. Mas ainda bem o coração é teimoso e não abriria mão tão fácil assim por causa das invencionices do amor romântico. Eu fiquei, construí, e entendi que amor é também compromisso de querer ficar, mesmo quando tudo parece cair e você tenha que catar de volta. 
“Não é feitiçaria, é tecnologia”. 
 Permanecer no amor foi uma decisão. 
     Com 34 anos veio outro mito para quebrar: minhas amigas mais próximas começaram a ter filhos. Eu passei a ouvir que o tal do “relógio biológico” tinha gritado da noite para o dia, como se assim como se fala sobre olhar para a pessoa da sua vida e saber na hora, o útero se contorcesse num balé inédito e você soubesse ali, naquele momento, que precisa ter um filho. Então quando eu passaria a sentir? Há menos de dois meses de fazer 35 anos esse relógio já não tinha que ter tocado? 
    Minhas amigas me falam do momento em que pararam de tomar pílula, tiraram o DIU ou “liberaram” e eu acho profundamente corajoso e bonito que essa decisão seja tão forte. Eu queria muito querer, mas não quero. Não consigo “liberar” um filho.
     Meu relógio está parado ao mesmo tempo em que meu corpo não está ficando mais jovem. Será que um dia eu vou querer tanto alguma coisa a ponto de tomar a decisão? De vez em quando eu penso numa concepção meio Virgem Maria, alguma coisa que simplesmente OPS ACONTECEU, mas eu sou planejada e capricorniana demais para isso, então se o tal do relógio não toca, não teria outra saída para mim a não ser tomar a decisão.
     Ano passado eu li “Maternidade” da Sheila Heti e ela falou uma coisa que me impactou muito: “Não querer ter filhos é uma decisão tão definitiva quanto ter”. Isso muda sua vida de uma forma semelhante, lidar com a decisão e com o que ela traz. Mas então o que escolher? O que vai me trazer a certeza se o meu corpo que já deveria ter me dado o sinal aos 35 anos não me fala nada?
     Assim como eu quebrei essa invenção do amor romântico preciso também desconstruir a ilusão de que meu corpo está quebrado só porque ainda não quero ser mãe. Agora o que eu preciso é cuidar de mim mais que tudo. Achar graça na vida e amar estar aqui cada vez mais. Quero gostar de mim tanto, mas tanto, que esse amor poderá ser redistribuído, e focar na criança que ainda mora em mim antes de trazer outra para o mundo. 
     Entendi que esse processo tem mais a ver com decisão do que um alarme interno. E é preciso ter fé no corpo e na vontade, pois esses nunca me deixaram mão. Então espero, sem culpa e sem medo, mais um baile do desejo que impulsionará decisão. Ou não.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Estar vivo

Às vezes estar vivo requer: comprimidos de passiflora, comprimidos um pouco mais fortes, chá pra dormir, ligação com a mãe, dançar até suar, chorar no banho, sonífero, calmante, aromaterapia, psicanálise, passe, massagem, amigos que te dizem: estou mal também.

Estar vivo às vezes demanda uma coragem doente de acreditar que amanhã, daqui a pouco, só por hoje, as coisas vão melhorar. Um pouquinho de cada vez.

 

Estar vivo também é sobre tomar caldos, engolir água salgada, bater a cabeça na areia e voltar tonto (eu só queria um mergulho).

 

Demanda oração, novena de vó, tapear a angústia como se ela fosse uma pessoa (mas na verdade é um planeta) tomar banho pelo simples fato de praticar uma ação. Aliás, para permanecer vivo é necessário ação – mesmo que em algum dia se trate de apenas respirar.

 

Estar vivo às vezes dá um trabalho do cão. Gosto dos que estão aqui na luta de transformar a dor em uma coisa bonita e significativa (estar vivo), porque me mostram que não estou sozinha na batalha.

 

Mas veja: estamos respirando, e os dias estão passando, e continuamos aqui.

 

Continuaremos aqui. E de toda lágrima no chuveiro nasce uma flor no ralo, prometo, que um dia te mostra que a vida dói, mas tem sentido, é bonita, e se apresenta para os que teimam.

 

Eu mal posso esperar para continuar viva. E para te ver.

domingo, 19 de julho de 2020

Aqueles dois

Ela achava que não aconteceria de novo, não daquela forma. Já tinha navegado o amor algumas vezes para saber que paixão assim deixa a gente sem ar no meio do dia e ela tinha que ser funcional. Ela dizia que quanto mais a gente sobe mais o tombo machuca, e quando alguém perguntava se ela preferia passar a vida em banho maria evitando se apaixonar de novo, ela dizia que já teve seu quinhão de paixões avassaladoras e por isso queria ficar em terra firme.  (só diz isso quem já amou muito. Joelho ralado é privilégio de quem se apaixonou)
            Mas o amor é um bicho sorrateiro e não dá direito de escolha nem ao coração mais patchwork, e foi assim, contra todas as certezas e batalhas internas, que ela conheceu alguém. (sempre penso em como são os minutos anteriores a conhecer alguém. Será que os planetas se alinham, o mundo entra em câmera lenta, dois carros batem, ou acontece um trovão? A paixão para mim é isso, a história de um acidente, um acontecimento absolutamente inevitável)
Foi em um aniversário onde nenhum dos dois queria ir. Ela foi carregada por sua melhor amiga e roommate que investia há alguns meses na aniversariante, e ele era amigo de trabalho da mesma, e na verdade estava ali porque o escritório todo apostou que ele não iria, afinal, ele nunca vai a nada. Na chance de embolsar 50 reais e deixar a Criação da agência com cara de tacho, tomou banho e foi.
Se encontraram no balcão do bar. Ela já estava lá quando ele chegou pedindo uma cerveja sem perceber que ela estava com o braço estendido e o ticket na mão. (vale dizer que ela tem horror a quem fura fila. Já brigou no metrô, no restaurante a quilo e no banco. Já foi xingada por crianças e velhinhos, mas não deixa ninguém furar fila). Ela reclamou, disse que privilégio do macho hetero tinha limite e que ela estava há uns 10 minutos se acotovelando ali. Ele pegou a cerveja antes (o tal do privilégio é infalível) e entregou para ela. Ela aceitou e deu sua ficha na mão dele.
Já que a amiga naquele momento estava mimetizada na aniversariante na pista de dança, e ele não gostava de ninguém do escritório, começaram a conversar. E na verdade perceberam que tinham algo em comum pelas coisas que detestavam: estar ali, festas em geral, música eletrônica, e os hábitos de outras pessoas, gente que demora a pedir no restaurante, gente que larga tudo para fazer um mochilão, gente que não gosta de coração de galinha.
Depois de meia hora de conversa e duas cervejas quentes para cada, descobriram que se chamavam Ana e Edu. Edu mesmo, não Eduardo (segundo ele, o primeiro bullying que sua mãe praticou), e mais uma hora depois e algumas danças tímidas de músicas que eles finalmente gostavam (Pixies e Daniela Mercury) perceberam que estavam gostando um pouco um do outro também.
Se beijaram porque não restava mais nada a fazer, e porque queriam. O beijo não encaixou (você seguiria adiante depois de um beijo que não encaixa?) mas decidiram ir para casa mesmo assim. Para a casa dele, que tinha um gato recém adotado e um pouco de medo de deixá-lo sozinho por muito tempo. Ela achou que ele era esquisito e charmoso na medida certa, mas enquanto ele falava ela rezava para ele não ser só mais um esquerdomacho da Zona Sul, ela não aguentaria mais um.
No apartamento descobriu que ele não era. Continuaram conversando sobre coisas em comum que detestavam, dando beijos que ora encaixavam e ora não, até que ela pediu um antialérgico quando começou a empolar na altura do colo por causa do gato.
Treparam. (O sexo foi melhor do que o beijo). Ela não quis dormir lá, disse que ficaria com medo de empolar ainda mais e a glote fechar, e ele a levou na portaria quando o carro chegou (e mandou mensagem perguntando se ela tinha chegado bem).
Marcaram de se encontrar na próxima sexta em um bar com coração de galinha e cerveja em boa temperatura. Descobriram também as coisas que gostavam em comum, e em um momento muito solene, ele pegou sua mão e disse que não se livraria do gato, já estava apegado e nunca faria isso com um bicho. Ela respirou aliviada (ele não era um babaca) e disse que podiam ir para a casa dela.
Chegando lá encontraram sua roommate de calcinha e sutiã na cozinha, a amiga do escritório veio logo em seguida. Transformaram a situação em uma cerveja pós sexo e ficaram os quatro até 3h da manhã conversando. Naquela noite não treparam, estavam bêbados demais, mas o sexo rolou no dia seguinte entre bafo matinal, olheiras e aquele constrangimento que só a primeira manhã juntos é capaz de proporcionar.
Como era sábado (e como ela tinha gostado do cheiro dos pêlos do peito dele, e da forma com que dormia silencioso) decidiram permanecer juntos. Foram tomar café da manhã na padaria ainda lidando com o constrangimento, falando pausadamente, mas rindo e contando histórias das pessoas que descobriram ter em comum. Era tímido, mas era fácil, e isso fazia ser promissor. (e “promissor” era uma palavra que ela fugia, pois promissor era o que fazia a gente acreditar)
A sexta terminou no domingo fim do dia, e só não se arrastou pela semana porque adultos calejados têm medo. (mas se tem algo mais forte do que o medo é o desejo, e o desejo fez com que se escrevessem todos os dias até chegar a sexta de novo)
Continuaram se encontrando, e cada vez com mais frequência. Quando perceberam, já estavam frequentando festas e encontros dos amigos, combinando o outro dia, e o que fariam para jantar. Depois de alguns meses ele perguntou para ela o que eles eram, e ela disse que não imaginava que depois dos 30 anos precisasse pedir alguém em namoro, mas pediu, e ele ficou feliz. 
Hoje ela está fazendo um ciclo de injeções antialérgicas, e ele procura um apartamento mais arejado. Eles não sabem ainda, mas vão se mudar para lá juntos, e vão ser felizes, vão brigar, vão se amar, se questionar, mas ela ainda vai gostar do cheiro que mora no peito dele, e ele ainda acha que a forma que ela ri tem umas três notas diferentes, e jura que um dia aprende a tocar violão só para tirar.
Quando acham que estão em crise, um dos dois (sem o outro saber) faz o movimento contrário aos anos que estão juntos até voltarem para aquela festa, aquela pista e aquela briga por cerveja no balcão de bar. E reconstruindo tudo se lembram porque se amam, e se amam de novo.
O amor depois de um tempo continua promissor, aquela palavra que ela tinha tanto medo. E por mais que os cafés da manhã de sábado na padaria não tenham mais a timidez do início, tem o silêncio compartilhado, que é o que existe de mais confortável em viver com alguém.
Eu não sei se eles ficam juntos para sempre ou não, daqui de onde eu vejo só me resta torcer para continuarem sendo felizes e gentis um com o outro (que é o que acho que eles têm de mais bonito, embora eles continuem achando que seja odiar as mesmas coisas).