terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Lindo feito arte feia

"Senta aqui, escuta isso."

A frase repetida à exaustão durante meses e humores diferentes quando você colocava um disco pra tocar que significasse o que queria me dizer.

Era sempre outra voz a falar que me amava, ou qualquer outra coisa a respeito do amor que não a sua.

Detalhes - Roberto Carlos – Roberto Carlos, 1971

A primeira vez que a gente dormiu junto você passou a madrugada recitando "Detalhes" do Roberto Carlos no meu ouvido. Dizendo que essa música, que eu já tinha escutado milhares de vezes naquele especial de fim de ano do Rei, significava uma história de amor apenas para os incautos.

“É uma maldição. É sobre alguém que nunca superou o fim e por isso não deixa o ex-amor em paz. Diz que ela vai pensar nele e vê-lo em outros caras o tempo inteiro e por isso não vai seguir adiante”

Dance Me to The End of Love – Leonard Cohen – Various Positions, 1984

Você acabou ficando. Era o quinto dia consecutivo que eu chegava a casa e te encontrava cozinhando ou estatelado no chão ao lado do meu toca discos feito o “Homem Vitruviano”.

Naquele em específico você tinha ido a uma loja me comprar um presente que tocava agora assim:

“Dance me to your beauty with a burning violin”

Me tirou pra dançar enquanto eu segurava sacolas feias de supermercado. Perguntou se eu conhecia Leonard Cohen, e eu disse que não.

Você disse que estava feliz por trazê-lo para a minha vida. Que eu não conhecia ainda, mas ia me apaixonar por este homem intenso, “bonito feito arte feia”, de um timbre complexo que cantaria coisas que eu precisava descobrir.

“Essa música, por exemplo, todo mundo acha que é sobre amor, mas na verdade é sobre a morte”.

Os dois são a mesma coisa, eu disse.

Larguei as sacolas no chão e dancei com você.

Heaven – Rolling Stones – Tattoo You, 1981
De vez em quando eu tenho pequenos flashbacks do seu corpo esparramado na cama, embolado no meu edredom branco amarelado de menina que trepa demais.

Abria a janela de manhã, cansada de te abraçar e te morder, e me arrastava para o trabalho enquanto você continuava ali, imóvel feito uma pintura.

Você ainda não dizia nada sobre a sua vida, mas agia como se eu fosse o seu ar. Perguntava que horas eu voltava e ficava ali me esperando.

(Eu era nova demais para perceber que não se deve mergulhar no amor sem antes levar um snorkel.)

The Boy with the Thorn in His Side – The Smiths – The Queen is Dead, 1985

A gente sempre vê magia no desajustado.

Não sei se é um problema da juventude, mas talvez o que eu mais tenha mudado depois de você foi parar de ser a protagonista complicada para querer ser a personagem secundária, que é mais leve.

Eu achava que morar naquela bolha era necessário até que você começasse a se expressar de alguma forma.

Você se recusava a conhecer o que existia para mim além de você. Achava que o que tinha era o suficiente para nós dois.

Uns Dias – Paralamas do Sucesso – Bora-Bora, 1988

Com o tempo você ia dizendo cada vez menos coisas até que um dia não se ouvia nem mais a sua respiração.

Era como se, ao me ver ali, entregue, a história tivesse perdido a graça e era preciso recomeçar em algum outro lugar.

Pensando agora, os dias se passaram como se alguém tivesse apertado o botão para que um filme voltasse. De repente, sua jaqueta sumiu do chão da minha sala, o livro não estava mais na pia do banheiro, as panelas estavam fora da mesa da cozinha e o tênis havia sumido da varanda.

E como só vivíamos mesmo naquele quadrado da minha casa, é como se nós dois nunca tivéssemos existido.

It´s All Over Now, Baby Blue – Bob Dylan - Bringing It All Back Home, 1965

Deixei agora, na portaria do seu prédio, todos os discos que você me deu.

Junto com eles te deixo também as histórias, o edredom branco amarelado, os passos de dança, o movimento da cama (e todo o resto que acordava os vizinhos), a planta que eu nunca saberia cuidar, a parte de mim que ainda amava você e aquele disco do Roberto Carlos. Lembra dele?

"E tudo isso vai fazer você lembrar de mim"