quarta-feira, 30 de março de 2016

Processo

va.zi.o
adj (lat vacivu) 1 Que não contém nada ou só contém ar. 2 Despejado. 3 Sem moradores; desabitado, vago, desocupado. 

O apartamento é uma cidade fantasma. Eu escuto o vizinho tossir no primeiro andar. Nada nas suas gavetas, metade do armário desocupado e já faz uns dias que eu coleciono sinônimos para a palavra vazio.

 sm 1 O espaço vazio; o vácuo. 2 Sentimento indefinível e profundo de saudade angustiosa. 

De manhã eu fiquei deitada em silêncio. Ouvi meu coração batendo fraco, a festa de aniversário do ano passado na nossa sala, o primeiro natal que passamos aqui, você me comendo na cozinha, sua voz sussurrando que me amava, copos quebrando no chão, copos quebrando na parede, copos quebrando pela casa inteira. Quando foi que a gente parou de se amar?


3 Insaciabilidade. Estômago vazio. 

O apartamento é um mausoléu. Todas as coisas são memorabilia macabra, um mosaico das historias que vivemos juntos. Quem sai de casa tem esse consolo. Quem sai de casa é mais livre?


4 Que tem falta ou privação de alguma coisa. 

Hoje de manhã eu acordei e percebi que já não doía mais. Chorei porque se não lembrava, já não sentia. Do nosso amor não ficou nem o desamor e isso também é triste.

5 Diz-se da cabeça sem ideias. 

Quando foi que os dias começaram a correr sem que eu lembrasse que você existia?

6 Diz-se do coração sem afeições.

Eu acho que enterrei você.

en.con.tro 
s.m. Ato ou efeito de encontrar.

Faz uns dias que eu levanto da cama no mesmo horário. Renomeei todas as coisas do apartamento. Criei novas histórias para as fotos em cima da mesa, para os discos que ficaram, para a reminiscência. Ontem eu te ví na rua e você estava bonito.

1 Casual posição face a face com uma pessoa ou coisa. 

Eu espero que você esteja feliz, mais do que a gente foi. Se era tão bom quando parecia que você era a única pessoa possível, imagina agora que eu tô vendo o mundo?

2 Colisão de dois corpos: encontro de veículos. 3 Combate imprevisto entre duas tropas em marcha.

Eu lembro de você e é bom. 

 4 Encontro de contas, acerto.

Tenho um sorriso besta, muitas olheiras e nenhuma certeza do que virá. Enquanto escrevo, ele dorme ao meu lado. Pode ser que seja ele, pode ser que seja qualquer outra pessoa. Depois de você eu não faço mais planos.

5 Confluência de rios. 

Se você sobrevive ao fim, sobrevive a qualquer coisa. E o amor se torna possível de novo, só porque você já morreu uma vez.

6 Achado.


Já faz uns dias que eu coleciono sinônimos para a palavra “encontro”, e te desejo amor. 



Texto para a segunda edição da revista Cause.

quarta-feira, 16 de março de 2016

E se.




Algumas músicas acabam comigo, algumas eu queria te mandar, mas acho que não posso.
Lembra aquela tarde dos discos? As horas que a gente passou entrando em todas as mini lojinhas daquela rua comprando tudo o que a gente gostava, “porque dinheiro é pra gastar com isso mesmo” e depois de sair de lá, bolsas cheias, bem menos grana e um vitrola meio velha no meu colo no ônibus, a gente ainda parou num bar.
Ninguém entendia a nossa lingua, a gente não entendia a deles, mas de alguma forma você conseguiu fazer o dono do bar concordar em ligar a vitrola e durante duas, três horas, a gente ouviu muitos dos nossos discos como se ninguém estivesse perto, bebemos negronis, e teve uma hora que você deitou a cabeça no meu colo e perguntou “porque a vida é tão complicada”.
Antes que eu te beijasse, você levantou.
Depois disso a gente andou até a minha casa e você subiu com a vitrola e os discos enquanto eu guardava a bicicleta. Abri a porta e tinha música de novo, e tem umas músicas que acabam comigo, você sabe, e você colocou Al green, que covardia, colocar Al Green. Me esquivei para o banho. Você não me beijaria. Me tiraria para dançar e não me beijaria e perguntaria porque a vida é tão complicada enquanto respondia um e-mail dela sobre que tipo de marcenaria vocês deveriam usar no quarto.
Saí do banho e você estava no sofa. Deitei no seu colo, você mexeu nas minhas canetas, escolheu a merda de um marca textos e escreveu em mim. Você lembra disso?
PLEASE HELP ME MEND MY BROKEN HEART. (E a frase ficou escrita na minha lombar por três dias)
No dia seguinte você ia voltar para o Brasil e eu continuaria minha jornada sabática por uns bons meses, sem ninguém.
A gente tinha essa mania engraçada de se encontrar pelo mundo, mas no último ano você tinha decidido não me beijar, não me comer, só que não entendia que ouvir meus discos, deitar no meu colo, escrever em mim e me encontrar em outro continente era mais intimo do que sexo.
Era mais fácil se eu só sentasse em você, eu dizia.
A verdade é que você sempre soube. Era você. Desde o dia um foi você, tudo o que veio depois foi tentativa de despistar meu coração de você, você me movia.
E agora você diz que está disponível para mim.
Vejo a polaroid do marca textos na minha lombar. Alemanha gelada, os discos, a vitrola quebrada que hoje serve de apoio para a planta da sala.
O quanto eu te queria, meu Deus.
E agora você pode. 
"Pode"
Podia ter sido foda.
Mas virou literatura.




sexta-feira, 4 de março de 2016

Where the wild things are



Eu te escondo entre as minhas costelas. Entre os ossos. Fui eu que te coloquei ali, no único lugar onde ninguém te encontraria, dentro de mim.
Mas você teima em se espalhar. Nunca fica no seu lugar designado, quieto, na minha gaveta de vertebras.
 Quando eu percebo você está no meu corpo inteiro, atrás das minhas entranhas, revirando meu estômago feito um cachorro de rua, fechando meu coração num punho cerrado, soprando no meu ouvido feito um fantasma.
Eu também me escondi no seu corpo. Nenhum de nós fica impune.
A diferença é o tamanho do estrago.
No seu corpo eu sou presença, mas no meu você é maré.